Poucos são os que têm o privilégio de, hoje em dia, abrir a carteira e dizer: “posso comprar, posso ir, pode encher, não há problema, …”. A verdade é que a maioria vive das migalhas da crise, ocupando áreas enguiçadas, habitando sonhos permanentemente adiados, numa espécie de materialização de uma penumbra de quase não existentes.
O dia-a-dia destas pessoas, a quem as premissas de dias solarengos falharam numa qualquer curva da vida, face a que os respectivos corpos prolongam o que os rostos imageticamente tentam não projectar, assenta na impermeabilização da couraça que reveste as suas preocupações, como pressuposto da preservação do mínimo de dignidade. O objectivo é, pois, tornar possível “desfrutar” de uma riqueza inexistente, sem, contudo, perder a cara. Dilema incompatível com uma ambiência serena, simples e contemplativa.
Por isso afirmam a existência de vontades, as quais, por que queiram, não conseguem silenciar. Em determinados momentos, aquelas necessitam de ser concretizadas, não havendo muros ou barreiras que impossibilitem tal. As pessoas cujas dificuldades são sucessivamente mal interpretadas e, pior ainda, não resolvidas, voltam-se para o exterior, e revoltam-se com o interior, seguindo o modelo de intersecção dos anseios, deslocando o enfoque em que transparecia um ambiente familiar e calmo, para um enfiamento perspéctico esperançoso. Não admira, pois a quase clausura a que sua situação os levou, a isso propicia.
Que se acautelem, pois, os deuses menores e os que se acham insubstituíveis. É que, em momentos de ruptura, todos somos capazes de serrar as correntes que nos agrilhoam e, como a história nos ensina, o poder da turba, na maior parte das vezes, é imparável.