
Interrompo este interregno de artigos, indo contra o que prometi aos meus caros leitores, em face do surgimento de um caso excecional.
Ontem, foi daqueles dias em que andei de um lado para o outro e pouco parei nos Banhos. Por isso, só cerca das 23H00, através de uma breve notícia inserta numa rede social, a qual, ainda para mais, era escassa em pormenores, soube da infausta notícia. Tinha falecido a minha antiga professora primária. Sim, D. Manuela Violante da Cruz, durante muitos e muitos anos docente neste lugar, tinha-nos deixado.
Como é óbvio, em face do adiantado da hora, não pude confirmar aquela má nova. Hoje, logo que amanheceu, liguei para familiares directos e aí as lágrimas rolaram. Tanto mais que, por desconhecimento, nem ao funeral, ocorrido na tarde ontem, fui.
Sim, eu bem sei que ainda anteontem, a vi na missa dominical e, por isso, muito longe de imaginar tal desfecho. Não necessito de dizer que se num momento estamos vivos, no seguinte pode surgir a chamada do Altíssimo. Então, quando se tem a provecta idade de noventa e tal anos esse risco é exponencial.
Foi com esta extraordinária docente que aprendi as primeiras letras. E como ensinava bem. Muito exigente, com profundos conhecimentos e, sobretudo, sabendo tirar partido do melhor dos seus educandos. Foi com ela que também saboreei algumas reguadas – poucas, diga-se em abono da verdade. Aliás, bendito castigo, pois ensinou-me o caminho do bem e, sobretudo, a dedicação ao esforço para me tornar melhor.
Foi ela que no final da quarta classe – era, assim, a sua designação naqueles tempos da década de sessenta – insistiu com os meus pais para que me proporcionassem a continuação dos estudos. Eram muito poucos, mas mesmo muito poucos, os que usufruíam dessa prerrogativa. Dizia ela repetidamente aos meus pais: “Manuel e Laura deixem o rapaz continuar os seus estudos, pois é inteligente e tem capacidades para chegar longe”. Isto é textual, não mera gabarolice, uma vez ter assistido às conversas. Pelo seu lado, os meus progenitores contrapunham: “ mas, D. Manuela - como carinhosamente a tratavam, pois também era aqui casada - como podemos colocá-lo a estudar se não somos ricos?” De modo algum temos dinheiro para a mensalidade que o Colégio de Anadia cobra. Relembro que nesses tempos era o único estabelecimento de ensino secundário existente neste concelho. E como era privado … Até que um determinado dia, ela avançou com nova ideia: “apesar do Hernâni – conhecia-me muito bem - ter maior apetência para as ciências e/ou humanidades, matriculem-no na Escola Industrial de Cantanhede, pois é de ensino gratuito. Bem sei, que se trata de instrução técnica, cujo objectivo é colocar os jovens no mundo do trabalho empresarial o mais cedo possível, mas sempre é melhor que ir para as obras ou para a vossa pequena agricultura, a qual mal dá para o pão de cada dia. Depois logo se verá qual o seu futuro.”
E foi, muito graças a ela, que me tornei no homem e profissional que hoje sou. Se não sou melhor ou não cheguei mais longe, apenas me posso culpar a mim. Desta magnífica instrutora e dos meus saudosos e queridos pais tudo de bom recebi. É certo que muita coisa aproveitei, mas por minha culpa, máxima culpa, outras não aproveitei.
Sempre que podia e ocasião proporcionava cumprimentava-a. Um encanto, uma simpatia e sempre um gosto em recordar velhos tempos. Principalmente desejosa em saber o que este vosso escriva fazia actualmente.
Há cerca de vinte anos, pouco depois da sua aposentação, ainda cheguei a falar com algumas pessoas para que se organizasse um evento que prestasse publicamente a justa homenagem a tão insigne mestra. Uma pessoa, entretanto também já falecida, desaconselhou-me a tal, afirmando que não contasse com ela para tal. Bem, todos temos sempre alguém que não gosta de nós. Esmoreci e hoje, com toda a sinceridade, sinto-me enormemente arrependido.
Do mais fundo da minha alma – escrevo com os olhos rasos de lágrimas – peço a Deus que a perdoe e que rapidamente a receba em Seus braços, se é que já não o fez. Por acreditar piamente, sei que um dia nos voltaremos a encontrar.
Aos familiares, uma vez que por desconhecimento não estive presente nas exéquias, repito, apresento as mais sentidas condolências.
Prometo, a não ser que algo muito forte o impeça, estar na missa do sétimo dia, a realizar às 21H00, na Igreja Matriz de Bolho, concelho de Cantanhede, na próxima terça-feira, dia 28.