O pianista tocava uma música que não me era estranha, mas que, com toda a certeza, não conseguia descortinar. Presumi que fosse Mozart e apeteceu-me perguntar-lhe se, na verdade, assim era. Todavia, deixei-me estar sentado na poltrona, uma vez pouco importar o autor. O essencial era o momento, a quietude, a paz de espírito e a extrema sensibilidade que aquela acarretou e, sobretudo, para onde nos transportou.
Demos as mãos, olhámo-nos nos olhos e, sem darmos por isso, beijámo-nos ternamente sem que os lábios se chegassem sequer a tocar. A sintonia era completa e isso bastava-nos.
A tua água aquecia no copo, o meu conhaque arrefecia no balão. E isso que interessava? O relevante estava noutro âmbito e esse não podia ser repetível e, por isso, havia que aproveitá-lo, pois, conforme se costuma dizer, “aquilo que não fizeres hoje não poderás fazer amanhã”, pelo menos na assunção da verdade de que tudo o que é adiável deixa de ser igual e, principalmente, ter o mesmo valor.
O silêncio gritava palavras ensurcedoras que ecoavam nas vetustas paredes da sala daquele velho palacete. Não necessitávamos de dizer o que quer que fosse, pois o olhar, o toque, as carícias falavam mais que mil palavras.
No silêncio da sala, os acordes do piano continuavam. Nenhum dos outros presentes proferia palavra. Por um lado, por respeito a quem devotadamente se dedicava a algo que realmente ama, produzindo o êxtase dos sentidos, por outro, porque, imaginámos que à nossa semelhança, também para eles a música se sobrepunha às palavras tornando-as supérfluas.
Ao fundo da sala de pé alto, bem ao estilo vitoriano, o pianista continuava deliciado e a deliciar-nos com as suas notas, agora, sem margem para dúvidas, de Chopin. Das três grandes janelas rasgadas de alto abaixo, por entre as cortinas, entrava uma leve brisa, ajudando a arrefecer a cálida noite deste Setembrão quente e abafado. Do lado oposto, três aberturas em arcos ogivais dão para um pequeno bar, onde alguns casais bebericavam cocktails próprios da época. De volta à sala, observámos uma série de conjuntos de poltronas de cor verde, onde nos sentámos. Iluminados q.b. por candeeiros de pé-alto acrescentam o tom romântico ao lugar. No meio uma pequena mesa onde nos serviram as bebidas. A decoração das paredes, sóbria para que não sejamos distraídos do essencial, é feita especialmente à base de faianças antigas. Numa das paredes, um armário em madeira, dos finais do século XIX, inícios de XX, não sei precisar bem, contém uma série de livros antigos sobre as prateleiras, cujas frentes se encontram revestidas de finas rendas, fazendo lembrar as velhas casas senhoriais outrora tão em moda. Um serviço de chá das Índias ocupa a parte inferior, trazendo-nos à memória outras ocupações e outros ambientes, cujas reminiscências, porventura, há muito se desvaneceram. Do tecto, magnificamente trabalhado em estuque, pende um enorme candeeiro de madeira com oito braços, o qual desconfiamos que não acende, mas que, em boa verdade, falta alguma faz.
De vez em quando, aliás muito raramente, trocávamos umas palavras, não que fossem necessárias, mas que a degustação do momento a isso obrigava. Palavras ditas em surdina, mas que o balbuciar dos lábios chegava para entender.
Deixámos o bar cerca da uma da manhã. Esperávamo-nos uma noite em que os nossos corpos acabariam por se desfazer da pouca roupa e se constituíram em autênticos instrumentos musicais, tantos foram os lugares onde tocámos e destes brotaram outros prazeres.