Bem sei que, hoje-em-dia, existem coisas que não nos deveriam causar admiração. No entanto, confesso, ser impossível não estranhar algo que vemos diariamente estampado na nossa imprensa.
Vêm estas palavras a propósito de, ao folhear, há dias, o Jornal de Notícias, diário que aprecio por ser aquele que melhor assume a alma da cidade de que muito gosto, i.e., o Porto, urbe sentida e amada, a qual se afirma na sua identidade muito própria, isente de quaisquer bairrismos (bacocos) e muito menos invejosa de outras cidades de beleza invulgar, como é o caso de Lisboa, por ver que quase metade da edição eram anúncios de penhoras. Eram folhas e mais folhas de editais com a acção implacável e legalíssima do fisco.
Sinceramente, até parecia que alguém, nesse dia, tinha encartado uma enorme resma de folhas de papel cinzento, a velha cor dos mangas-de-alpaca, com notícias e notícias de insucessos familiares e empresariais, todos alinhados em corpo 9 ou outras quase ilegíveis, ou seja recorrendo a letra de tamanho 8 ou menos, com vista a conseguir o máximo de anúncios por página.
Com toda a franqueza, nem as páginas de necrologia eram tão fúnebres como aquelas, pois, por vezes, estas têm fotos de quando os falecidos rondavam a casa dos cinquenta, apesar de terem morrido aos oitenta/noventa e tais anos.
É de lei que os editais de penhoras têm de ser editados. Mas assim, a monte, num conjunto tão grande, num alinhamento correspondente à importância dos bens penhorados, fizeram-me recordar as antigas fotos de família, em que os pais estavam numa ponta e depois se seguiam os filhos por nível etário descendente. Fotos deste tipo que, uns mais que outros, todos guardamos em molduras trabalhadas, quase que diria como filigrana, amarelecidas pelo tempo.
Em tempos não muito distantes, ou dito de outro modo, em tempos de vacas gordas, os anúncios das empresas eram completamente distintos. Muito raramente eram publicadas penhoras, mas havia páginas inteiras, quando, por vezes, não eram mesmo suplementos, a divulgar os relatórios e contas dos chorudos lucros que obtinham, querendo, deste modo, demonstrar a eficácia da gestão e o desenvolvimento impulsionado.
Será que, afinal, a maioria não passavam de fogos-fátuos ou máscaras para iludir gente de boa-fé?
Como tudo mudou!