Passados uns dias telefonou-me. A noite já tinha praticamente caído e o manto escuro, num céu coberto de pesadas nuvens, mais negra tornava o final daquele dia. Tinha iniciado, há pouco, a visualização do telejornal, hábito há muito enraizado. Entre as notícias repetidas de crise e mais crise e a dormência provocada pelo calor emanado do alegre crepitar da lenha na lareira, o toque do telemóvel despertou-me para uma realidade inesperada.
- “Olá, boa noite! Tudo bem contigo?
Não tendo, de imediato, reconhecido de quem se tratava, apenas balbucionei a resposta do costume:
- Está! E contigo? Quando finalizava tão diminuta e inconsequente resposta, dá-se o clique e reconheci quem me ligava, ao mesmo tempo que me mortificava pela falta de energia colocada na minha voz.
Ela, porém, sem dar importância à falta de entusiasmo – ainda estou para saber se sentiu tal ou fez de conta que não – continuou o diálogo.
- “Confesso que, durante estes dias, esperei por um telefonema teu. Como não surgiu, pensei naquele provérbio grego que diz «se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé», e, por isso, eis a ligar-te, mesmo que isso vá contra aquilo o que sempre pensei”.
E, antes que pudesse dizer o que quer que fosse, acrescentou:
- “Bem, não faço nem mais nem menos do que tens apregoado, porque eu, mesmo à distância, bem te tenho lido, ou seja, de que é preciso mudar. Aliás, não foi Jean Paul Sartre que afirmou «todo o homem é feito de todos os homens»”?
Já desperto, e baixando o som da TV, uma vez que valores mais altos se elevavam, retorqui-lhe, procurando dar, por autêntica ser, maior tonalidade e alegria à voz:
- Não imaginas como fico feliz com este telefonema. Podes ter a certeza absoluta que – aqui, sinceramente, exagerei – não calculas quantas vezes pensei em ligar-te. Porém, a disponibilidade de tempo – pura mentira (!) -, bem como algum receio – frisei várias vezes a palavra receio - como desse lado seria sentido o meu eventual telefonema, fez-me, mais que uma vez, desistir. Hoje, todavia, estou arrependido, e de joelhos – fica sempre bem esta frase – penitencio-me e peço desculpa por não o ter feito.
Do outro lado, ouço um riso cristalino, fazendo lembrar o som das cascatas de água a correr pelas escarpas, em dia de Verão, da Serra do Caramulo, timbre ouvido aquando do fim-de-semana que, por aquelas paragens, passámos nos finais de Agosto de 2010. E, antes que dissesse mais, proferi:
- Não imaginas a saudade que já sentia desse teu riso, genuinamente teu, fruto daquilo que de mais puro tens. Olha, faz-me recordar os excelentes dias que passámos a visitar as muitas praias da Costa de Prata! Lembras-te do Furadouro e do excelente peixe que lá comemos?
Soltando mais uma sonora gargalhada, apenas se atreveu a dizer:
- O que achas? Tal como tu, com toda certeza, também eu recordo, com uma muita saudade, os bons momentos que na minha vida aconteceram e, sem dúvida, esse foi um deles. Aliás, se me permites, acho despropositado perguntares isso, pois bem sabes que é algo que recordarei para sempre.
Não querendo, de modo algum, entrar por um saudosismo sem futuro, retorqui-lhe:
- Como deves saber, quando as pessoas começam a recordar os tempos passados isso é sinónimo de início de velhice, pelo que, apesar do gosto que tenho em lembrar esses momentos maravilhosos, me interessa muito mais falar do teu e meu presente e quiçá do futuro. O teu belo corpo, modulado por uma forma oitavada, o teu perfume, os teus lisos cabelos, os muitos passeios à beira-mar, as viagens – os quilómetros atestam-no, valendo-nos a ausência de portagens nas ex-SCUT e o preço dos combustíveis - que fizemos para desfrutar deste lugar ou daquele restaurante, continuam bem presentes na minha memória. Todavia, agora quero saber o que fazes e que planos tens para o futuro.
Simples palavras brotaram do outro lado:
Apesar dos anos passarem, persistes, como sempre, em ser um querido!
(Continua)