O meu ponto de vista

Outubro 03 2011

(…)

Tudo aconteceu, naquela manhã de domingo, dia em que o centro da cidade mais está despovoado. O local, cercado de casas elegantíssimas, com portas de três vãos, erguidas em lotes estreitos e profundos que marcam a alma da cidade, não foi escolhido ao acaso.

Depois dos cumprimentos de circunstância, Ricardo exclamou:

- Olha que este encontro não foi fortuito.

E acrescentou, de imediato, como pretendesse reforçar a ideia:

- Acredita que não foi mera obra do acaso. Há tempos que sei que, domingo após domingo, quase invariavelmente, por aqui passas.

Francisca, sorrindo, e sentindo, intimamente, um prazer inusitado, para si própria, pensou:

- Por quem me tomas, isso já eu sabia há muito.

Apesar de nada ter verbalizado, simplesmente abriu os seus finos e bem desenhados lábios para esboçar um sorriso que espelhavam aprazimento.

O que era para ser um breve diálogo, naquela manhã de um sol radioso brilhando sob um céu imensamente azul, por conjunturas que a ambos satisfazia, prolongou-se por largos minutos. O deslumbramento que sentiam, era, sem darem por isso, também fruto do contágio dado por tudo aquilo que os rodeava. O ambiente tranquilo, bucólico até, em que o ferro forjado dos varandins daquelas casas, cujo estilo se semelhava ao gótico, se podia comparar às rendas em croché que muitas das avós ainda conservam como uma riqueza sem preço, aumentava o prazer que sentiam pela mútua companhia.

Por isso, o convite para o café que Ricardo formulou nada de estranho teve. Numa mesa ao fundo do Café-Pastelaria Recantos, a salvo dos olhares mais indiscretos, a conversa fluiu, as palavras soltaram-se e ambos redescobriram tesouros antigos que tinham tentado esconder. Aliás, sem sucesso, como bem constaram. Sentimentos que, apesar de sempre terem estado presentes, pelo menos no subconsciente, os seus apressados passos nos itinerários quotidianos tinham relegado para lugares mais ou menos recônditos.

À pausa para o café, seguiu-se um passeio, não de mão-dada, apesar de ser o que mais desejavam. Todavia, após tantos anos, em que as suas vidas não se cruzaram, era necessário dar tempo ao tempo. E de tudo continuaram a falar. Palavras há muito caladas brilharam com uma rara eloquência. O rumo que as suas vidas, entretanto, tinha tomado, a família, os amigos, os projectos futuros e, essencialmente, dos adiados, entre tantos outros, de tudo foi falado.

Em andar lento, admiraram a paisagem dada pelas acácias no seu tom verde a tender para o amarelado, pois o Outono aproximava-se a passos largos. O Parque das Mónicas acolheu-os sob as suas centenárias árvores. Sentados num banco admiraram o rio correndo, lá em baixo, de forma pachorrenta e num azul reflectido, curso de água cantado e que os encantava.

Após uns momentos de silêncio, em que cada um tentava adivinhar o que o outro estava a cogitar, Ricardo, mais uma vez, olhou-a longa e demoradamente, mergulhou nos seus belos olhos castanhos e, num rasgo de coragem, disse o que há horas lhe avassalava o peito:

- Francisca, bem sei que o que vou dizer é, hoje em dia, antiquado e se qualquer jovem o ouvisse a primeira coisa que faria era desdenhar, se é que não comentasse com algo bem pior. Todavia, por continuar a ser um romântico e, sobretudo, um cavalheiro, algo que faz lembrar arqueologia (!!!) – ou será antropologia? -, atrevo-me a correr o risco. Se não gostares, paciência …

Francisca, espicaçada pela curiosidade, mas antevendo que as palavras que aí viriam não lhe desagradariam, bem pelo contrário, com um sorriso que deixava ver os seus belos lábios pintados de um vermelho vivo – lábios que tanto o tentavam -, retorquiu

- Caramba, Ricardo, deixa-te de rodeios e fala. Diz o que tens para dizer. Estás a deixar-me em “pulgas”!

Ricardo, meio titubeante, mas fortalecido pela veemência das palavras que acabara de ouvir, disse:

- Sabes que jamais esqueci o teu carinho, a tua paixão e a oportunidade dos teus conselhos? Sempre recordei, mesmo nos momentos de maior desânimo, a delicadeza com que a todos tratavas e a simpatia que colocavas em tudo o que tocavas. Mesmo nos momentos em que, por ti, sentia uma raiva imensa, a memória que guardava comparava-a a um belo pano de linho, fino, belo e, simultaneamente, urdido fortemente. Crê que não houve um único dia que não pensei em ti.

Francisca, após breves fracções de segundo, com um olhar luminoso, que reflectia o que lhe ia na alma, apenas inclinou a cabeça e o beijo, longo, ardente, há tanto tempo ansiado, surgiu. A paixão brotava em todo o seu esplendor e a reabilitação do adormecido sobreveio. As suas bocas encontraram-se, ora terna, ora furiosamente, numa sofreguidão, num torvelinho de emoções cavalgantes, como pretendessem, naquele momento, saldar toda a dívida de anos de saudade, angústia e desespero.

(…)

(Excerto)

publicado por Hernani de J. Pereira às 16:37
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